ARMOTERAPIA....
Lenine de Carvalho
Desmonto, limpo e lubrifico velhas armas, que me acompanharam por tantos lugares...
É uma espécie de terapia, manuseá-las, sem pressa, atentando para os detalhes mil vezes conhecidos.
As pistolas automáticas, os revólveres, o velho rifle, a faca de caça alemã, pesada e com fio de navalha, a pequena adaga de combate, o punhal de trincheira, a faca de mato....
O pente de balas que guarda nove mortes intactas....a beleza brilhante da munição....
O contato tão familiar...
Olho-as sobre a mesa e o olhar e o pensamento se voltam para outras diversas lembranças...
Meu amigo Mauricio Synésio, mais do que um irmão, companheiro de tantos acampamentos, de tantos risos e lágrimas compartilhadas...
A memória quer sorrir....leva-me de volta, para um lugar que chamávamos de "Mata das Onças"...
Era uma enorme reserva florestal, dentro de uma fazenda, o dono era nosso amigo, autorizava-nos a caçar, acampar na mata, eram centenas e centenas de alqueires de mata, intocada, que devia estar da mesma maneira desde que o mundo fora inventado.
Havia sempre muitos rastros de onças e por mais de uma vez chegamos a ver algumas delas, sussuarana, ou onça parda, o puma americano.
Acampávamos na mata, pelo prazer puro e simples da oportunidade de estarmos em contato com a natureza primitiva, levávamos as muitas armas, munições, praticávamos tiro em alvos improvisados, extraíamos um palmito tenro, fresco, macio e saboroso que comíamos com mel de abelhas, junto a um riacho que refletia as copas das árvores.
Também caçávamos....sem crueldade ou espírito destrutivo, mas havia cervos, veados mateiros, porcos do mato, pacas, antas e capivaras, além das onças...
Atirávamos apenas em um porco do mato, ou um veado mateiro, uma paca ou uma capivara, o resto daquela gente deixávamos em paz, por respeito a todos eles e por sabermos que se reproduzem pouco e já não há tantos...
Limpávamos a caça, assávamos numa fogueira que fazíamos dentro de um buraco no chão, comíamos um pouco e levávamos o resto para casa....só muito tempo depois é que voltávamos a atirar novamente.
O prazer maior era acamparmos, dormirmos ao lado da fogueira e durante o dia, observar as mil belezas da mata, as tantas e diferentes flores, os bandos de macacos brincando nas árvores e que irritados nos atiravam frutas e galhos quando nos viam, protestando contra nossa presença em enorme gritaria.
O verde....o verde de todas as cores....sentir a vibração que emanava das árvores, abraçar um tronco....fechar os olhos e sentir a troca de energias, refletir sobre o perfeito equilibrio, a harmonia ainda não desequilibrada, a mão de algum Deus em todas as partes, um Deus ainda livre e primitivo, puro, que não havia se tornado refém dos homens e seus interesses, um Deus ainda não usado....Um Deus Uno e Multiplicado, em cada verde folha da mata...
Espíritos de quem antes de nós, havia caminhado pelas mesmas trilhas e as Entidades que sempre haviam estado lá...
Tudo isso era sentido, pressentido, com maior ou menor intensidade e com uma reverencia, profundamente respeitado....
Os olhos se umedecem com as lembranças....minha velhice já principiou....os sonhos e as esperanças tomaram novas formas, novos rostos, cores diversas, mas a essência das decepções e renúncias, do que foi e é um amargo sentir, parece que não quer envelhecer...
Ah, a mata como um todo....lembrança bonita para se guardar para mais tarde.....e o mais tarde já chegou....chegou tão depressa...junto com quentes lágrimas....
Mas, a memória quer sorrir, quer ter o direito de escolher entre as tantas vivências, o que trazer para o instante de agora e escolheu trazer a estória do Carvoeiro e do Caipora, motivo de tantos risos aquela noite e o tempo todo depois.
Ao lado da mata, cercada de pastos, havia o casebre, onde humilde familia morava, eram carvoeiros, arrancavam os enormes tocos de grandes árvores que haviam há muito sido derrubadas para dar lugar aos pastos e desses tocos, fabricavam carvão, que depois vendiam na cidade.
Deixávamos o carro junto à casa deles e sempre levávamos pacotes de bolachas para as crianças, alguns doces, uma garrafa de aguardente para os adultos, às vezes um pacote de arroz, óleo, café...
Fazia tempo que não íamos acampar, estávamos com vontade de comer um porco do mato assado na fogueira, resolvemos preparar junto a duas árvores um pouco distantes, um chamariz para os porcos, sal grosso esparramado no chão, algumas espigas de milho e um pouco de mandioca cortada em pedaços.
Construímos um pequeno girau, estaleiro, em cada uma das árvores, em altos galhos, onde deveríamos ficar durante a noite, eu numa árvore e meu amigo Maurício em outra, esperando que a manada de porcos viesse comer o que havíamos deixado para eles.
Nos rifles 44 e 38 as lanternas magnéticas fixadas nos canos...bastaria acendê-las e apertar o gatilho, a bala atingiria o que o centro da luz iluminasse, sem necessidade de se fazer pontaria, mesmo porque no escuro não daria para se ver a alça de mira nem a massa de mira das armas.
A tarde era verde...e falava conosco....meu espírito sabia intuir, entender, a verde linguagem da mata...da verde tarde...o pressentir de entidades...
Quase noite, nos preparamos para subir nas árvores, a uns cem metros de distancia uma da outra.
Descobrimos então, frustrados, que nenhuma das lanternas funcionava, apesar das pilhas novas.
Nas mochilas havia velas brancas, as levamos para os estaleiros nas árvores, para bem ou mal iluminar o caminho, na hora de voltar e teríamos de confiar na institiva pontaria, atirando no escuro, guiados pelo barulho, se os porcos viessem.
Meu amigo Maurício, a quem eu humorísticamente chamava sempre de "Nhô Muriço.." e ele me chamava de "Nhô Lenin......"....
Acomodados nos estaleiros, não podíamos fumar, nem usar repelentes de insetos, nenhum barulho poderia ser feito, ou caça nenhuma iria aparecer..
Sentado em meu estaleiro, silenciosamente observo a mata escura......advinho os macios pássaros noturnos, pelos sons às vêzes lúgubres e tristes de seus cantos.
Os mil ruídos da mata....tão familiares e conhecidos...a satisfação, a profunda alegria por estar naquele lugar, naquele momento, naquela hora, sentado num estaleiro nos altos galhos de uma árvore, sentindo a mata e a noite em meu redor, o saber que meu amigo "Nhô Muriço" estava mais adiante, segurando um rifle em outro estaleiro.
E a noite foi se passando, sem que nenhuma caça se aproximasse de onde há tantas e cansativas horas estávamos, o corpo já protestando pela forçada permanência em tão cansativa posição.
"__Nhô Muriço !!! "
"__Nhô Leninnnn !!! "
"__Vamos embora que não vai aparecer ninguém !
"__Então vamos !!! "
Então descemos das árvores, acendemos as velas e com as velas acesas nas mãos vinhamos gritando um para outro, "Nhô Muriço !!! " Nhô Leninnnn"....para nos guiarmos pelas vozes um do outro e nos encontrarmos.
Assim a mata encheu-se com nossos gritos, a acompanhar duas velas acesas iluminando a trilha, até nos encontrarmos e irmos para o acampamento, dormir o resto da noite...
No outro dia de manhã fomos embora.
Um mês depois voltamos, ficamos 3 dias acampados, matamos um veado mateiro, atravessado num grande galho verde o assamos inteiro na fogueira preparada num buraco no chão.
Mais tarde Nhô Muriço iria curtir o couro, esticá-lo e embalsamar a cabeça com os chifres, pregando-a com olhos de vidro, num pedaço circular de madeira.
Levantamos o acampamento quase noite já e fomos para a casa do carvoeiro, onde estava o carro, para guardarmos as coisas, nos despedirmos daquela gente humilde e hospitaleira e irmos embora.
O nosso amigo carvoeiro tinha visitas, um compadre que morava num sítio a alguns kilômetros dalí.
Nos convida para entrar, tomar um café, "prosear" um pouco....não aceitar seria falta de educação, iriam se sentir ofendidos.
Ao redor da mesa, eu, Nhô Muriço, o carvoeiro, seu compadre e um filho pequeno deste.
O compadre do carvoeiro então nos diz:
"__Vocês tem muita coragem de passar a noite nessa mata....
"__Porque você diz isso? Eu lhe pergunto..."
"__Nessa mata.....tem "coisas"...."
"__Que coisas?
"Eu sei que vocês sendo da cidade, não vão acreditar, mas é muito perigoso passarem a noite aí dentro dessa mata. "
"__Mas, que perigo tem? Estamos sempre muito bem armados."
"__Ah, essas armas de vocês não valem de nada para enfrentar o que eu já vi..."
"__Mas, o que foi que vc já viu lá na mata? ?
"__Eu ví....o Caipora !!!
Noto então que o filho pequeno dele, está de olhos arregalados, ouvindo atentamente o que o pai esta contando...
"__Viu?? "
"__Sim, ví..."
"__E como ele era? "
"__Bem, eu não cheguei a ver muito de perto, mas eu ví....e eram dois Caiporas !!! "
"__Dois?? "
"__Sim e deviam estar cumprindo alguma penitência, pois imagine o senhor, que no meio da noite cada um carregava uma vela acesa e gritavam sempre a mesma coisa..."
"__E o que eles gritavam? "
"__Um gritava: Nhô Muriiiiiiiçuuuu !!! E outro respondía: Nhô Lenííííííí !!! Daí parece que se encontraram, pois as duas velas começaram a andar juntas e os gritos acabaram ! Então eu corrí para minha casa e fui rezar, agradecer a Deus por que eles não me viram...."
A duras penas conseguimos segurar o riso, eu e meu amigo Caipora Nhô Muriço.....
Já de volta, dentro do carro, entre gargalhadas gritávamos um para o outro:
Nhô Muriço !!!
Nhô Leninnnnn !!! "
.....Atrás de nós, no escuro, a mata guardava os poemas que eu não sabia que iria escrever mais tarde...como guardava também, as outras vivências que ainda me estavam destinadas, pois os Verdes Espíritos, A Entidade Una e Multiplicada, A Roda do Destino, tudo sabiam....tudo sabem.....
Olho as velhas armas sobre a mesa.....limpas, lubrificadas e montadas....é necessário guardá-las agora....é necessário guardar também as todas lembranças.....para usá-las mais tarde.....
Lenine....